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30/09/2014

Desejo a nu

Quero só ver-te nua.
Perceber como é o teu corpo.
Como é a cor das tuas costas amorenadas.
Como caem os teus cabelos ao longo da tua espinha.
Como são as curvas dos teus ombros.
Ter a presunção do peso das tuas pernas.
Adivinhar-lhes o sabor 
na prova quente da minha boca
em beijos continuados.

Quero só ver-te.
Sonhar em tocar-te.
Tocar-te já seria demais.
Antes que eu te toque, 
quero que sejas tu 
a ter o desejo em fogo,
de ter o meu toque em ti.


Quero só ver-te nua.
Desenhar a tua imagem na 
minha mente e trazer-te assim
sempre comigo.
Não pensar nos tristes.
Não saber da dor.
Não ter a memória insulada,
sem veneração, 
só a conjectura de lamentos e ais.

Quero-te nua.







A pergunta

Uma luz.
Uma frincha na porta cerrada sem recado.
A possibílidade de perceber 
o que está atrás da zona proíbida.
O deserto das ideías que se cala 
com a chance da visão da descoberta.
O saber peça à peça da verdade enevoada.
Uma claridade despertada.
O fim da mentira lavada e perfumada.
O imenso tornado pequeno,
o fundo do abismo referido.
Uma luz que me diga o porquê.
A verdade.

Porquê eu?



Alma negra

Olá suprema fria tristeza.
Poderiamos ser muito menos do que amantes, 
amigos da noite escura em bréu ocultador sem testemunhos.
Poderiamos ser muito menos que almas siamesas,
irmãs em tormentos.


Somos vivos, 
mas morreremos todos os dias aos poucos.








Fiel da balança

Se és tu o meu unico bem, 
a raíz da minha vida certa,
além do meu mal em malícias profanas;
diz, 
diz-me te peço.

Será que ao confirmarmos a dor,
o desalento,
a mágoa, 
a dobrada solidão,
a prova do sangue cuspido,
de quem nos fez tanto mal,
o sentir o trago da vingança que 
nos rouba a humanidade,
compensa?

Compensa?
Ficar sem coração no peito...



Morte

Não vou olhar para dentro.
Não sei se o posso fazer.
Não quero mirar-me.
Reconhecer que não me reconheço.

Sei tão bem esconder os segredos 
dos que a mim segredos confiam.
Sei ao mesmo tempo 
que o faço à tanto tempo,
que já não discirno quais são 
os meus segredos
dos segredos dos outros.

Se eu pousar as lágrimas no meu peito,
poderei em segredo desvendado chorar?

Mas não...
Não vou olhar para dentro.
Não vou chorar nem sequer um momento.
Vou erguer as costas e caminhar ao desvario
das estradas.

A um destino eu vou chegar.



Poesia

Eu gosto das manhã assim.
Com a impaciência dos minutos e o prazer 
dos tempos furtados.
Gosto de despertar-te aos poucos,
como quem abre as persianas do quarto e arremessa luz
pingada em todas as direcções.
De ver a cama exalar o nosso calor,
prova das nossas horas.
Gosto até das despedidas,
do aproveitar todos os bocadinhos até ao fim.

Sei que as manhãs assim,
são assim 
porque estamos juntos.




Gosto

Gosto das maças verdes e rijas ao trincar.
Gosto dos céus dos dias de inverno.
Gosto de achar que sou capaz 
de contar todas as estrelas.
Gosto das romãs que descascas para mim.
Gosto das palhas secas.
Das camas acabadas de fazer.
Dos cheiros das flores do quintal.
Gosto da lanterna marroquina e dos jogos 
de luz e sombra que nos seguem.
Gosto das cervejas bem frescas.
Gosto dos pratos com fundos azuis, 
que parecem loiça saudosista.
Gosto das praias sem ninguém.
Do mar sem pessoas.
Do cheiro do princípio da manhã.
Do calor da cama 
ao voltar a deitar-me.
Do perfume do café 
com os nossos nomes.
Gosto de beringelas.
Gosto de descobrir 
música que nunca ouvi.
Das viagens a sítios a conhecer.
Dos peixes com propósito.
Dos cavalos a galope sem sela, 
com a crina em liberdade.
Gosto de falar de tudo.
Gosto de poder não dizer nada.
Gosto da razão que voltou.
Gosto deste caminho.
Gosto das ruínas de casas velhas.
Dos sonhos que faço com elas.
De imaginar quem lá esteve,
o que lá se iniciou, 
viveu e morreu.
Gosto de parar no tempo.
Gosto de andar de mão dada.
De escutar os comentários 
de quem comenta o que se dá a comentar.
Gosto da verdade.
Do silêncio.
De saber o tempo para amanhã.
De ver os carrinhos à escala nas montras.
Gosto da bica com canela.
Gosto de comer pratos diferentes.
Do meu cachimbo.
Do prazer que é chegar cedo ao trabalho.
Do aprender e saber sobre quase tudo.
Gosto de ter uma voz que me permite escutar.
Gosto de ser o que vê e também 
quem se deixa observar.
Gosto das manhãs e das noites.
De guiar de noite.
Gosto das férias e das folgas.
Gosto de chegar.
De estar aqui.


Tirando isto tudo,
gosto eu muito de ti.







Sei-te

Dou-te as horas.
Dou-te o tempo.
Entrego-te a palma da minha mão,
nela todos os meus segredos.
Entrego-me na inanição de ter-te.
A ti eu quero.
Sem gotas de sangue nos teus olhos,
lágrimas pesadas,
pensamentos recusados.
Tomo-te as horas,
fico-te com a voz errante,
dou-te todo o tempo do tempo.
Ajeito o teu rosto,
tomo a forma do teu olhar e nele 
tenho o meu espelho sincero, 
sem pontos ou cicratizes escondidas.

Sei do tempo.
Nos teus braços, 
não há tempo nem horas.
Nem sinais ou ventos.
Nem se escuta o gemido dos minutos,
que é rei quando não estou contigo.









26/09/2014

Meio por meio

Chuva a meia cana.
Luz sem sombra morena a pesar.
Doces lábios e beijos
em gota a gota.
Os olhares substituem
as palavras que não têm lugar agora.
Águas quentes e ao jeito dos corpos.
Vem.
Caminha para mim
sem a noção dos passos.
Vem.

Meio por meio,
eu dou-te tudo.

Sem tempestades,
sem noites aclaradas.
Vem,
dá-me a tua mão,
eu dou a minha pele.








Evito

Açoito a quilha da esperança.
Nela mordo a minha prece por dizer.
Regateio o saber da experiência.
Não me importa nem me vale de nada.
Ponho a verdade sob escuta e oiço 
o que se rasga em silêncio.
Sopram-se frases feitas, 
dizeres que nem têm meio, verbo ou sujeito.
Desdenham-se as mãos, os anéis, as luvas, 
as tatuagens com letras sem letra.
Remói-se tudo, tudo é descartável sem o ser.
Prendo-me às luzes sem correntes.
Sou a nota de negro num quadro de cores terra.
Amofino as lágrimas que nada me dizem.
Constroem-se paredes destinadas 
a desabar ao primeiro grito.
Turbantes que escondem não só os cabelos,
mas também o rosto, 
a traça da expressão. 


Não trago a esperança.
Nem a ilusão.
Nem as palavras são minhas.

Açoito as águas,
crio ondas, 
faço oceanos de frases
e evito a lágrima.









Ocupação

Há sempre tempo.
Sempre há tempo para poder dar-te a minha mão.
Sempre haverá tempo,
mesmo que pareça que o tempo,
não nos queira dar tempo para tal.
Há sempre em mim o desejo quando te vejo,

quando te beijo e quantas vezes já me contenho,
em não te beijar,
para tanto não te desejar.
Por te amar,
também te respeito.
Amo o teu corpo e com o meu venero-te.
Há sempre tempo e sempre haverá tempo
para eu te amar.

Mesmo na sombra.




Procura

Fugi.
Perdi.
Desperdicei.
Escondi.
Deixei o que não queria ter.
Agora vivo em ilusões.
Concilio o inconcebível.
Abasto-me com sonhos
que se castigam com recordações.
Deixei-me.
Dei-me.
Falhei.
Fugi.
Enegreci.








Grito surdo

Vou correr pelas ruas,
pelos campos sem luz!
Vou correr até que o meu peito
arda de dor e arfe cúmplice por ar!
Irei caminhar um caminho que não se pisa.
Até que caia sem forças , 

tonto nas pernas que já não me sustêm.
Vou gritar, urrar e insultar o altos dos céus!
Dirigir a minha mais intima fúria às nuvens!
Vou chorar e pedir perdão a Deus.
Passado um pouco de eterno,
ergo-me e vou continuar a minha senda.

Não recordar tudo o que fiz.
O que não acabei por ser.